Mocha Celis era uma travesti que não sabia ler ou escrever. Trabalhava como prostituta nas ruas de Buenos Aires, como a maior parte de suas colegas (estima-se que 90% das travestis argentinas façam programas). Quando era levada presa, precisava de ajuda para entender os papéis que lhe davam para assinar. Foi assassinada em condições não esclarecidas. A estimativa de vida para travestis na Argentina é de 35 anos.
No último mês, seu nome foi parar em uma escola: começou a funcionar o Bachillerato Popular Mocha Celis, primeira instituição de Ensino Médio em Buenos Aires especializada em atender a população travesti e transexual. “A maior parte da população travesti deixa a escola por causa do preconceito”, diz Francisco Quiñones, um dos criadores e hoje coordenador da escola. “Nós queremos lhes dar a possibilidade de se formar e ter uma opção de vida que não seja a prostituição.”
A ideia não agrada a todos. Toni Reis, presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) diz que a associação é contrária a abertura de escolas especiais porque promovem segregação. “Nós temos que trabalhar a educação como um todo”, diz. “Não queremos criar guetos, queremos estar integrados na sociedade e é para que isso que trabalhamos”.
Ele acredita que travestis e transexuais educados em escolas especiais serão criados “em uma bolha”, e não vão estar preparados para se reintegrar à sociedade. “Nós compartilhamos o problema, mas preferimos trabalhar de outra maneira. Em um estudo recente da Unesco, contatou-se que 40% dos estudantes masculinos da educação básica não gostariam de estudar na mesma sala que um estudante gay e 60% dos profissionais de educação não sabem como lidar com essa questão na sala da aula”, defende. Reis ressalta que 20 estados brasileiros já aceitam o nome social de travestis e transexuais, no lugar do nome de nascença.
Quiñones concorda que o ideal seria que as escolas públicas aceitassem todas as diferenças de gênero sem preconceito. Entretanto, considerando os alarmantes números relacionados a travestis, os fundadores da Mocha Celis acharam que não dá pra esperar que esse processo aconteça.
A ideia de criar a escola surgiu em 2011. No mês passado, começaram as primeiras aulas, para 25 alunos e alunas – nem todos travestis ou transexuais: a escola aceita qualquer aluno e está com inscrições abertas até 20 de abril para quem completou o Ensino Fundamental.
Fica no bairro de Chacarita, em um prédio compartilhado com outros projetos sociais. A escola está alinhada com a proposta de educação do pedagogo brasileiro Paulo Freire e ensina literatura, cooperativismo, matemática, noções digitais, memória e reconhecimento trans, entre outras matérias. O curso tem três anos de duração. “Ainda esperamos para esse mês o reconhecimento da prefeitura de Buenos Aires, para podermos conceder título oficial aos alunos”, diz Quiñones.
Um dos maiores desafios da Mocha Celis é mudar o que se chama de “currículo oculto” das escolas regulares. É o que aprendemos na escola que vai além dos textos didáticos: nos ensinam que meninas usam rosa e meninos azul, que meninas brincam com bonecas e meninos com carrinhos, que os boletins devem ser entreguem “às mães e aos pais”, nos ditam as melhores maneiras de vestir e nos dizem que o sexo é reprodutivo e deve ser feito entre um homem e uma mulher. Transexuais não se encaixam nesse tipo de ensino.
Na Mocha Celis, a aula é dada em mesas redondas, para que os professores estejam em posição de igualdade aos alunos. Usa-se “as” transexuais para as garotas que nasceram garotos mas se vêem como mulheres e “os” transexuais para a situação contrária. Todos são chamados pelos nomes que escolheram ter. “Na escola regular, as transexuais se sentem violentadas desde a chamada de classe, quando geralmente se usa o nome de nascença. O mesmo para o caso de garotos”, diz Quiñones.
Divergências à parte, a gente espera que, de uma forma ou de outra, a realidade da população travesti e transexual mude para melhor.
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